Filosofia Social e Política

Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Monday, September 25, 2006

Aula 3-4 (27 de Setembro de 2006)

É o conceito da justiça (dikaiosyne) que, na República de Platão, despoleta a discussão sobre a composição da polis como um macroanthropos e, por equivalência, da alma do homem como uma micropolis (cf. 368e ss.).
No início do diálogo, no Livro I, são apresentadas três definições do conceito de justiça. A primeira, é apresentada por um homem idoso, Céfalo, e consiste numa noção concreta de justiça: a justiça consistiria em "dizer a verdade e em restituir aquilo que se tomou de alguém” (331d). Trata-se então de um conceito que espelha não propriamente uma aproximação crítica ao conceito de justiça, não uma sua circunscrição a partir da meditação filosófica em torno daquilo que é justo por natureza, mas a noção de justiça que era própria dos antepassados e da sociedade grega primordial e arquetípica, cuja corrupção não pode deixar de conduzir justamente à meditação filosófica sobre a justiça. A segunda é apresentada por Polemarco, filho de Céfalo, e consiste em defender que a justiça trata de fazer bem aos amigos e mal aos inimigos ­(332d). A aproximação ao conceito de justiça é aqui mais abstracta, abordando-a como uma proporção em que se dá a cada um aquilo que é devido. Finalmente, a terceira é apresentada pelo sofista Trasímaco, para quem a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” (338c). Trasímaco reflecte aqui o carácter "polémico", competitivo da cultura grega tradicional. Nesta, a virtude ou excelência (aretê) era adquirida essencialmente através da superação dos limites próprios - neste sentido: através do tornar-se mais forte - em confronto com o outro. É neste sentido que os heróis homéricos o são a partir do valor de um outro herói cuja derrota e superação é o indício do próprio valor e condição heróica do herói vencedor. Para o sofista Trasímaco, o ser "mais forte", ou seja, a marca da excelência ou da virtude heróica, consiste na capacidade para manipular os outros através das palavras e, neste sentido, para fazer passar o seu interesse próprio como o interesse da pólis no seu todo.
Sócrates reflecte sobre estas posições, refutando-as. A refutação a Polemarco baseia-se na ideia de que, se uma pessoa for má para uma pessoa má, ela tornar-se-á pior. Nesse raciocínio, estabelece uma analogia entre o homem e o cavalo. Para Polemarco, a justiça implicaria prejudicar sistematicamente o inimigo. Aquilo que está implícito nesta segunda definição é então, neste sentido, uma degradação do homem que surge como inimigo. Contudo, na perspectiva de Sócrates, o homem justo não degrada o homem porque, precisamente, a justiça é uma virtude e o homem justo é um homem virtuoso. Daqui segue-se que a justiça seria uma qualidade humana pela qual todos os homens se tornariam melhores, melhorando-se justamente em função do exercício das virtudes ou excelências (das aretai).
Na definição de Polemarco, este não introduz distinções entre os homens. Pelo contrário, Trasímaco introduz uma distinção entre os mais fortes e os mais fracos. Para este, os fortes governam os fracos, i. e., existe uma desigualdade natural: há homens mais fortes e mais fracos por natureza. Mais uma vez, apresenta-se uma analogia com animais: a vida política seria aqui análoga à relação entre um rebanho e o seu pastor; a polis seria então um rebanho a ser comandada pelo político.
Sócrates opõe-se particularmente à posição de Trasímaco, refutando-a. Para tal, ele distingue a política como uma technê, estabelecendo uma analogia entre a política e a medicina. Se a medicina é uma technê, ela é-o em função do objecto sobre o qual ela se exerce: a medicina só o é se provocar a saúde, sendo o interesse e a recompensa que o médico retirará do exercício da sua tecnhê algo apenas adjacente a esse mesmo exercício. Assim, tal como o médico é médico em função da saúde que provocou no doente, assim também o chefe político só o é através do efeito que na pólis tem a sua acção, e não através do seu interesse e das compensações que ele retira dessa mesma acção. Neste sentido, segundo Sócrates, a justiça implicaria uma arte política que consistiria na melhoria do bem de todos e não de alguns.
Assim, no final do Livro I, temos então duas aproximações ao conceito de justiça: a justiça é uma aretê, provocando o melhoramento dos homens; e é uma virtude ligada à arte política (tecnhê politikê).
Mas que tipo de bem, pergunta Gláucon no início do Livro II, é a justiça? Podemos distinguir três tipos de bem: aquele que é bem em si mesmo; aquele que é bem por si e útil; e aquele que, embora penoso, é útil (357c). Neste contexto, Gláucon apresenta a história do anel de Giges, um anel que atribuía a invisibilidade a quem o possuísse, para aventar a hipótese de que a justiça fosse não um bem supremo, mas apenas um bem intermediário, situado entre o melhor dos bens (poder cometer injustiças invisivelmente e, portanto, sem ser por isso punido) e o pior dos males (ser justo e sofrer injustamente castigos e punições). Ora, se o melhor dos bens seria poder ser injusto sem sofrer as consequências, a justiça situar-se-ia num meio-termo entre o óptimo e o péssimo, sendo o bem útil pelo qual se garantiria que não se sofre o pior dos males.
É então a pergunta acerca do tipo de bem que constitui a justiça que leva Sócrates à análise da justiça não só do indivíduo, mas também de toda a cidade. Esta correspondência tem por base a afirmação de que a justiça tanto encontra-se no indivíduo como na polis. Para isso, propõe-se construir uma polis de forma a depois compará-la com a estrutura da alma humana (369a), partindo da analogia segundo a qual a alma humana é uma micropolis e a polis um macroanthropos.
Platão distingue então três estratos humanos que constituem uma polis. Cada um destes elementos deve ter uma educação própria, de modo a desenvolver uma aretê específica, educação essa que se articula com o papel distinto que cada um tem na organização da polis:
i) em primeiro lugar temos os produtores, que providenciam a subsistência da polis. São eles os agricultores, artesãos, etc. Os produtores têm como virtude própria a temperança (sophrosyne);
ii) sendo que a polis é uma ordem que ultrapassa pequenas ordens que a incluem, elas precisam, antes de mais, de se defender. Neste sentido, temos os guardiões. E a virtude a ser desenvolvida pelos guardiães é um meio-termo entre a agressividade excessiva e uma excessiva brandura; comparados a um cão, estes desenvolvem a coragem (andreia), através de duas actividades essenciais à sua formação: a agilidade física na ginástica, para evitar demasiada brandura; e a música, de modo a temperar a agressividade.
iii) o último elemento, os chefes, têm de discernir o que é que cabe a cada um e qual a sua natureza. Um tal elemento deve cultivar uma virtude de natureza sapiencial, uma virtude intelectual ligada à sabedoria (sophia) mas de carácter prático, que se exprime na prudência (phronesis).
Em que é que estas distinções se relevam no homem? Vejamos então os equivalentes na alma humana:
– correspondendo aos produtores, existe na alma humana um elemento vegetativo e apetitivo.
– aos guardiões, corresponde uma alma irascível, um ímpeto anímico, a que os gregos chamaram thýmos.
– aos chefes, corresponde a parte intelectiva da alma.
Em conclusão, temos a identificação tripartida que Platão estabelece através da polis e da alma culminando nas virtudes de cada um:
Produtores – Alma vegetativa – Temperança (sophrosynê);
Guardiães – Alma irascível – Coragem (andreia);
Chefes – Alma intelectiva – Prudência (phronesis).
Relator: Luís Inácio

0 Comments:

Post a Comment

<< Home