Filosofia Social e Política

Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Monday, December 04, 2006

Aulas 11-12 (25 de Outubro de 2006)

Recapitularam-se aspectos essenciais da filosofia política de Maquiavel. O primeiro aspecto fulcral focado foi o de que no dealbar da época moderna deixou de se entender a política como um exercício de virtude. Assim, já em Maquiavel, o que está em causa não é um aperfeiçoamento do carácter do homem pela prática da virtude, mas a realização dos seus desejos mais íntimos: busca de glória, de riqueza, de poder. A política deixa de ser uma actividade teórica que visa mudar o sujeito, para passar a meditar sobre o melhor modo de realizar aquilo que esse sujeito já sempre e necessariamente é. O governante deve ter uma atitude impetuosa perante a vida. A qualidade do bom governante é a virtú (significando esta palavra, aproximadamente, força ou virilidade), que deve exercer de modo dominador perante a inconstância da fortuna. O importante é, principalmente nos momentos críticos, enfrentar a fortuna com impetuosidade, pois dessa forma se lhe poderá melhor resistir e dominá-la. (ver O Príncipe, cap. XV).
No Príncipe enumeram-se os vários tipos de principados, sendo a verdadeira questão a dos meios pelos quais se pode conservar o poder. Quanto à maneira de este se obter, é indiferente, pois todos os meios são válidos. Logo, deixa de haver a auctoritas (referência a um acto fundador e subsequente linhagem de indivíduos de que brota o exercício do poder) da tradição romana como legitimação do poder. Já não se distingue auctoritas de potestas, pois o próprio exercício do poder confere autoridade. Quem o exerce não precisa reconhecer nenhuma autoridade que o limite, nenhum outro poder que possa interferir no seu domínio. O poder gera de si mesmo a sua própria legitimidade, o que equivale a dizer que os poderosos não têm necessidade de apresentar justificações de si.
Subjacente a isto está uma visão muito pessimista da natureza humana, que é também um sinal dos tempos conturbados que se viviam na Europa. Esta visão, sendo um dos pressupostos da génese do pensamento da modernidade, está também presente em Thomas Hobbes.
Hobbes também coloca a tónica na vontade insaciável de poder do homem, associando-a ao desejo de auto-preservação: encarando-se o homem como um ser ameaçado, que tem que lutar pela própria sobrevivência, o poder é o meio pelo qual esta melhor se pode assegurar. Todavia, o desejo de poder não tem um limite pois é necessário adquirir mais e mais poder para se manter os meios de viver bem. Assim há «em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte» (Leviatã, Cap. XI, 2º parágrafo).
O homem à partida não é limitado por nada, tem direito (1) a tudo e a todos que constituem o objecto do seu desejo. No seu estado de natureza, o homem é um ser dominador que têm a liberdade (2) de subjugar tudo e todos, e o mundo é encarado como um objecto de conquista. Os homens são iguais entre si: o mais fraco de todos tem força suficiente para matar o mais forte, e as diferenças entre uns e outros não são tão grandes que um não possa aspirar a um benefício a que outros não possam também aspirar (ver Cap. XIII, 1º par.). Todos aspiram de igual modo ao poder (Cap. XII, 3º parágrafo). Ora, se não há limitações à ambição de cada um nos seus desejos de poder e de riqueza, há todavia uma quantidade finita de poderes e de bens para serem distribuídos e, portanto, há um conflito de interesses que impede os seres humanos de conviverem pacificamente. O estado de natureza do homem, ser de desejos insaciáveis, é um estado em que todos estão em guerra contra todos, e a auto-preservação de cada um exige o uso da astúcia ou de quaisquer meios de que se possa fazer mão. Os homens são iguais quanto à esperança de atingir os mesmos fins e, se desejam ambos uma mesma coisa impartilhável, tornam-se inimigos e esforçam-se por se destruir mutuamente. Assim, cada indivíduo constitui uma ameaça à segurança de todos os outros, e esta é uma situação insustentável.
Esta condição natural do homem é uma abstracção, uma representação do homem num estado prévio à constituição de leis. Hobbes define como “direito de natureza” «a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, a vida». Decorrente desta natureza humana, a razão estabelece como regra (primeira lei de natureza) a proibição de que o indivíduo nada faça para prejudicar a sua própria vida e, portanto, se esforce por adquirir a paz como meio alcançar a segurança. Esta lei de natureza é a primeira limitação ao direito de natureza do homem a tudo e a todos. Desta primeira lei fundamental deriva a segunda: um homem deve concordar, sempre que os outros também o façam, em renunciar ao seu direito a todas as coisas, concordando em limitar a sua liberdade ao que “aos outros homens permite em relação a si mesmo” (Cap. XIV, 6º par.). Estas leis e todas as outras não são mais do que o preceito bíblico que diz “faz aos outros aquilo que queres que te façam a ti” resume.
É portanto necessária a instituição de um estado civil que tire o homem do seu estado de natureza, onde não existe a justiça ou a injustiça mas apenas a luta pela sobrevivência. Onde não há estado civil, organizado, os homens têm direito a todas as coisas e nada pode ser injusto. A «justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos» e «a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los» (Cap. XV, 3º par.). O pacto é todo o acordo que cada homem faz com os restantes de renunciarem simultaneamente às suas liberdades naturais com fim ao bem comum. A instituição do Estado permite a correcta observância dos pactos por constituir um poder situado acima das vontades individuais, a que todos se devem subjugar. Tem de haver um direccionamento do direito natural para uma instância exterior aos indivíduos, para que estes não se destruam mutuamente, e é necessária a sua força coerciva para obrigar os homens a cumprir os pactos. Sem ela, em rigor, estes não poderiam ser celebrados.
Pelo pacto os cidadãos comuns renunciam simultaneamente de todos os seus direitos, que transferem para o soberano. É necessário um representante (soberano singular ou assembleia) para conferir unidade aos interesses divergentes dos indivíduos. É na a unidade do representante que se constitui a unidade do representado. Assim, transferindo o seu poder para um representante (que permanece acima das obrigações contratuais a que todos os outros estão sujeitos), o povo é o verdadeiro autor dos actos do seu representante, e fazê-lo é do interesse de todos, uma vez que sem este pacto cada um poderia contar apenas consigo mesmo para se defender de múltiplas ameaças. É só através da representação que o povo se constitui como sujeito portador de uma vontade própria. «À multidão assim unida numa só pessoa chama-se Estado» (Cap. XVII, 13º par.).

(1) Por “direito” entenda-se “a liberdade que cada homem possui de usar o seu poder”, ou seja, a ausência de impedimento. O homem tem direito a tudo e a todos no sentido em que, no seu estado de natureza, nada o impede de tudo querer conquistar ou usar a força sobre outro indivíduo.
(2) “Liberdade” é um termo definido por Hobbes como «ausência de impedimentos externos» (Cap. XIV, 1º parágrafo) de cada um fazer «o que o seu julgamento e razão lhe ditarem». Os conceitos hobbesianos de um modo geral são definidos previamente à sua utilização, para se esclarecer o sentido em que o autor os concebe e utiliza. O leitor mais incauto cairá em erros interpretativos se não atentar nas definições que vão sendo feitas ao longo da obra.

Relator: Pedro Santos.

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