Aulas 13-14 (15 de Novembro de 2006)
Na obra de Thomas Hobbes, o “Leviathan”, o autor começa por representar o estado de natureza (Cap. XIV), que é o estado anterior ao estado civil e que “é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida”, tendo consequentemente liberdade para “fazer tudo aquilo que o seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios mais adequados a esse fim”. Trata-se então de um estado de liberdade absoluta: todo o homem tem naturalmente direito a tudo e encontramos aqui a principal causa da discórdia entre os homens, o que leva Hobbes a negar a definição aristotélica do homem como um “animal político” – a competição, que se traduz numa guerra “que é de todos os homens contra todos os homens”. O homem, por natureza, é um animal socialmente perigoso. Nesta guerra de todos contra todos, nada pode ser injusto, pois, não havendo um poder comum, não pode haver uma lei. Desta condição, há que salientar que não existe distinção entre o “meu” e o “teu”, pois só um poder comum geralmente reconhecido pode estabelecer os limites intrínsecos à propriedade.
O homem tem, no entanto, paixões que o fazem tender para a paz. Ele é caracterizado, antes de mais, por uma paixão essencial: o medo da morte violenta. Daí que ele seja marcado pela necessidade de escapar ao estado de natureza, resultando dessa necessidade a primeira lei natural: “que todo o homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”. Da execução da primeira lei natural, surge uma segunda, em que cada um deve renunciar a sua liberdade originária e transferi-la para uma entidade exterior – “que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em resignar ao seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que os outros homens permite em relação a si mesmo”.
Ao transferir a sua liberdade para essa tal entidade, cada homem tem que ter a certeza que os outros o vão fazer também. A transferência mútua de direitos é aquilo a que Hobbes vai chamar de pacto. Deste pacto resulta uma circularidade viciosa e desta circularidade chegamos ao conceito chave de soberania, em que o poder soberano não é constituído através dos pactos, mas ele está subjacente ao pacto como sua condição de possibilidade; o poder soberano é retratado como sendo gerado pelo pacto, mas efectivamente o pacto requer a soberania como sua condição de possibilidade; se assim é, a pergunta é inevitável:
- Quais são as marcas do poder soberano? Como é que eu posso identificar o poder como tal? O que é que o caracteriza?
Como primeira característica, o poder soberano permanece no estado de natureza. Esta permanência quer dizer que ele funda uma determinada lei que garante um estado civil que não o determina; ele está acima da lei – o Estado está, neste sentido, “fora da lei” –, ou seja, o soberano está na base de uma ordem constitucional, mas não está determinado por ela, podendo assim decidir um estado de excepção a essa ordem jurídica (isto a nível interno). Mas se só estando num estado de natureza é que se pode fazer pactos, será que o poder soberano, que está no estado de natureza, também pode renunciar, fazendo pactos? Em Hobbes, o poder soberano pode fazer tudo menos deixar de estar no estado de natureza; a sua impossibilidade de “pactuar” consiste na condição de possibilidade da realização dos pactos conducentes ao estado civil, na medida em que não é possível estabelecer pactos sem haver um poder exterior que estabeleça a possibilidade do pacto. Como segunda característica, o poder soberano, estando no estado de natureza, não tem restrição à sua entrada em conflito com os seus semelhantes: a relação de soberania, vista pelo aspecto exterior, consiste em poder decidir a guerra e a paz em relação a outros Estados. A terceira característica decorre das anteriores: tendo em conta a sua condição interior e exterior, a soberania surge a partir da representação da própria sociedade civil (é a unidade do representante que faz a unidade do representado).
Dentro desta tripla característica, vemos que a apresentação de Hobbes do poder de soberania se liga a um determinado regime político; o que Hobbes faz é teorizar o estado absoluto a partir de uma perspectiva moderna. Esta teoria não pode deixar de originar reacções, que são de duas ordens: o liberalismo, que recusa que haja um poder de decisão capaz de se situar num estado anterior à lei e contesta a existência de um poder soberano situado acima da lei (como primeiro teórico do liberalismo temos John Locke); um segundo movimento, um conceito moderno de democracia, que recusa a possibilidade de uma representação transcendente da sociedade (a sociedade não pode ser representada e a vontade do soberano – o povo – não pode ser alienada por uma instância externa que represente o próprio povo e a própria sociedade – o autor paradigmático deste segundo movimento é Rousseau.
Então, como já referi, Locke surge numa tentativa de superação da teoria de Hobbes, e nele está em causa uma nova definição de soberania. Na obra “Dois tratados sobre o Governo”, livro segundo – Cap. II, Locke começa com a tentativa de representar como o estado de natureza não aquele estado de guerra de todos contra todos, mas um estado de perfeita igualdade e liberdade; o que caracteriza o estado de natureza em Locke é a igualdade de liberdade subordinada a uma lei da razão – “Para entender o poder politico correctamente (…) devemos considerar o estado em que todos os homens naturalmente estão (…) de perfeita liberdade (…). Um estado também de igualdade (…)” – “Dois tratados sobre o Governo”, livro II, Cap. II, paragrafo 4.
E esta é a primeira diferença em relação a Hobbes; a segunda é que, em Locke, o estado de natureza não consiste num estado de guerra, porque não são pensadas como essenciais a existência de relações sociais. No estado de natureza de Locke, relacionamo-nos sobretudo com a própria natureza; portanto, em Locke, o que está em causa no estado de natureza é o conceito de propriedade. Enquanto na perspectiva de Hobbes só se pensa em propriedade no estado civil, na perspectiva de Locke o homem é por natureza proprietário: cada homem vive num estado de perfeita liberdade e a esse estado pertence o conceito de propriedade – Livro II, Cap. V, paragrafo 25/26.
Em Hobbes, o reconhecimento dos direitos vinha do estado civil; por isso todos tinham direito a tudo (daí a origem do conflito). Em Locke, pelo contrário, o reconhecimento dos direitos é intrínseco ao estado de natureza; e esses direitos são: direito à vida; direito à saúde; direito à liberdade (sem vida e sem saúde não é possível a liberdade) e, como quarto direito, o direito à propriedade Este é um direito anterior à constituição do estado civil. Tal origina a que se faça uma pergunta: se não há um poder constituído, o que é que determina que uma coisa apropriada seja reconhecida como sendo de um determinado indivíduo? Não será preciso uma entidade exterior que o determine, mas tem de haver uma qualidade que se atribui à “coisa” e que a transforme em propriedade desse indivíduo. A essa relação chama-se trabalho. Qualquer coisa que o homem retire da natureza, transformando-a através do trabalho, passa a ser uma natureza transformada, uma natureza já não simplesmente natural, mas humanizada e, nessa medida, cunhada como propriedade – Livro II, Cap. V, paragrafo 27.
Relatora: Graça Pereira
O homem tem, no entanto, paixões que o fazem tender para a paz. Ele é caracterizado, antes de mais, por uma paixão essencial: o medo da morte violenta. Daí que ele seja marcado pela necessidade de escapar ao estado de natureza, resultando dessa necessidade a primeira lei natural: “que todo o homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”. Da execução da primeira lei natural, surge uma segunda, em que cada um deve renunciar a sua liberdade originária e transferi-la para uma entidade exterior – “que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em resignar ao seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que os outros homens permite em relação a si mesmo”.
Ao transferir a sua liberdade para essa tal entidade, cada homem tem que ter a certeza que os outros o vão fazer também. A transferência mútua de direitos é aquilo a que Hobbes vai chamar de pacto. Deste pacto resulta uma circularidade viciosa e desta circularidade chegamos ao conceito chave de soberania, em que o poder soberano não é constituído através dos pactos, mas ele está subjacente ao pacto como sua condição de possibilidade; o poder soberano é retratado como sendo gerado pelo pacto, mas efectivamente o pacto requer a soberania como sua condição de possibilidade; se assim é, a pergunta é inevitável:
- Quais são as marcas do poder soberano? Como é que eu posso identificar o poder como tal? O que é que o caracteriza?
Como primeira característica, o poder soberano permanece no estado de natureza. Esta permanência quer dizer que ele funda uma determinada lei que garante um estado civil que não o determina; ele está acima da lei – o Estado está, neste sentido, “fora da lei” –, ou seja, o soberano está na base de uma ordem constitucional, mas não está determinado por ela, podendo assim decidir um estado de excepção a essa ordem jurídica (isto a nível interno). Mas se só estando num estado de natureza é que se pode fazer pactos, será que o poder soberano, que está no estado de natureza, também pode renunciar, fazendo pactos? Em Hobbes, o poder soberano pode fazer tudo menos deixar de estar no estado de natureza; a sua impossibilidade de “pactuar” consiste na condição de possibilidade da realização dos pactos conducentes ao estado civil, na medida em que não é possível estabelecer pactos sem haver um poder exterior que estabeleça a possibilidade do pacto. Como segunda característica, o poder soberano, estando no estado de natureza, não tem restrição à sua entrada em conflito com os seus semelhantes: a relação de soberania, vista pelo aspecto exterior, consiste em poder decidir a guerra e a paz em relação a outros Estados. A terceira característica decorre das anteriores: tendo em conta a sua condição interior e exterior, a soberania surge a partir da representação da própria sociedade civil (é a unidade do representante que faz a unidade do representado).
Dentro desta tripla característica, vemos que a apresentação de Hobbes do poder de soberania se liga a um determinado regime político; o que Hobbes faz é teorizar o estado absoluto a partir de uma perspectiva moderna. Esta teoria não pode deixar de originar reacções, que são de duas ordens: o liberalismo, que recusa que haja um poder de decisão capaz de se situar num estado anterior à lei e contesta a existência de um poder soberano situado acima da lei (como primeiro teórico do liberalismo temos John Locke); um segundo movimento, um conceito moderno de democracia, que recusa a possibilidade de uma representação transcendente da sociedade (a sociedade não pode ser representada e a vontade do soberano – o povo – não pode ser alienada por uma instância externa que represente o próprio povo e a própria sociedade – o autor paradigmático deste segundo movimento é Rousseau.
Então, como já referi, Locke surge numa tentativa de superação da teoria de Hobbes, e nele está em causa uma nova definição de soberania. Na obra “Dois tratados sobre o Governo”, livro segundo – Cap. II, Locke começa com a tentativa de representar como o estado de natureza não aquele estado de guerra de todos contra todos, mas um estado de perfeita igualdade e liberdade; o que caracteriza o estado de natureza em Locke é a igualdade de liberdade subordinada a uma lei da razão – “Para entender o poder politico correctamente (…) devemos considerar o estado em que todos os homens naturalmente estão (…) de perfeita liberdade (…). Um estado também de igualdade (…)” – “Dois tratados sobre o Governo”, livro II, Cap. II, paragrafo 4.
E esta é a primeira diferença em relação a Hobbes; a segunda é que, em Locke, o estado de natureza não consiste num estado de guerra, porque não são pensadas como essenciais a existência de relações sociais. No estado de natureza de Locke, relacionamo-nos sobretudo com a própria natureza; portanto, em Locke, o que está em causa no estado de natureza é o conceito de propriedade. Enquanto na perspectiva de Hobbes só se pensa em propriedade no estado civil, na perspectiva de Locke o homem é por natureza proprietário: cada homem vive num estado de perfeita liberdade e a esse estado pertence o conceito de propriedade – Livro II, Cap. V, paragrafo 25/26.
Em Hobbes, o reconhecimento dos direitos vinha do estado civil; por isso todos tinham direito a tudo (daí a origem do conflito). Em Locke, pelo contrário, o reconhecimento dos direitos é intrínseco ao estado de natureza; e esses direitos são: direito à vida; direito à saúde; direito à liberdade (sem vida e sem saúde não é possível a liberdade) e, como quarto direito, o direito à propriedade Este é um direito anterior à constituição do estado civil. Tal origina a que se faça uma pergunta: se não há um poder constituído, o que é que determina que uma coisa apropriada seja reconhecida como sendo de um determinado indivíduo? Não será preciso uma entidade exterior que o determine, mas tem de haver uma qualidade que se atribui à “coisa” e que a transforme em propriedade desse indivíduo. A essa relação chama-se trabalho. Qualquer coisa que o homem retire da natureza, transformando-a através do trabalho, passa a ser uma natureza transformada, uma natureza já não simplesmente natural, mas humanizada e, nessa medida, cunhada como propriedade – Livro II, Cap. V, paragrafo 27.
Relatora: Graça Pereira