Filosofia Social e Política

Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Monday, October 23, 2006

Aulas 7-8 (11 de Outubro de 2006)

Iniciou-se a aula pela distinção entre o modo de abordagem da política de Aristóteles e o modo de abordagem da política por Platão. A cidade de Platão consiste, de certo modo, numa cidade ideal. Platão afirma que o conceito de pólis requer uma articulação entre o homem individual e esta mesma pólis: a definição da pólis assenta nesta analogia entre o "homem em ponto grande" e o "homem em ponto pequeno"; a pólis é o que é porque está de acordo com a estrutura individual da alma. Aristóteles, por seu lado, apresenta uma representação da alma humana distinta da platónica. Aristóteles distingue a alma em duas partes: uma parte incapacitante de razão (alogon) e uma parte da alma capacitante de razão (logon). Podemos encontrar esta distinção dual da alma de Aristóteles na Ética a Nicómaco, no fim do I Livro em 1102 a 30 e seguintes.
Por sua vez, a alma irracional ou alogon distingue-se de dois modos: 1º a parte que não tem nenhuma parte de logos e é, portanto, puramente alogon; trata-se de uma parte automática, auto–gerida. É uma parte instintivamente, vegetativa. 2º a parte que é alogon, mas tem relação com o logos, participando de alguma forma dele. É a parte sensitiva e desiderativa: a alma que deseja não é, na alma, puramente racional, mas tem ligação à racionalidade. Neste sentido, ela pode aperfeiçoar-se e tornar mais participante do logos. Encontramos a distinção destes dois tipos de alma: alma alogon/vegetativa e a alma capaz de desejar, uma parte da alma que, sendo desiderativa, pode participar da razão, mas não é intrinsecamente racional, em 1102b 30 da Ética a Nicómaco.
A distinção da capacidade de razão encontra-se em 1103a 1 e seguintes da Ética a Nicómaco, a qual se distingue de duas maneiras: 1ª em sentido estrito e de forma absoluta, é uma alma puramente "lógica" ou racional; e 2ª a alma no sentido que temos a possibilidade de escutar a razão. Não sendo intrinsecamente racional, esta parte pode entrar no domínio da racionalidade escutando e obedecendo ao logos.
A partir desta abordagem da estrutura da alma do homem, foi colocada uma questão: que é que a abordagem antropológica contribui para o pensamento político? A resposta é que se a alma humana se distingue por uma alma puramente intelectiva e uma alma que pode participar da racionalidade, embora não sendo intrinsecamente racional, há homens que se distinguem como homens mais "intelectivos" que outros: há homens cuja alma está mais habilitada para inteligir e, portanto, para dirigir e comandar as partes menos racionais da alma humana; há outros homens que estão menos vocacionados para dirigir, embora podendo participar da direcção. Por outras palavras: há homens habilitados por natureza a comandar e outros para obedecer.
Para Aristóteles, a distinção entre a natureza humana não se estrutura ao nível da pólis, mas a um nível situado aquém da vida política. Não é a pólis que estabelece as diferenças naturais entre os homens, mas sim a família ou a casa (oikos). Aristóteles faz uma diferenciação da natureza dos homens em corrrespondência com a vida familiar. Assim, homens e mulheres são diferentes por natureza: tal quer dizer que as suas diferenças anatómicas expressam uma diferença mais fundamental, uma diferença na própria alma. As diferenças visíveis e corpóreas entre homens e mulheres expressam, segundo Aristóteles, as diferenças invisíveis das suas almas respectivas. Esta distinção é visível na Política de Aristóteles em 1260a 10, a partir da referência ao conceito de deliberação e de decisão deliberada (proairesis). A distinção entre deliberação e decisão é fundamental na Política de Aristóteles. Deliberação é um processo interior de ponderação, de medição das várias possibilidades e do melhor caminho de agir. Ela antecede, nessa medida, a emergência da acção. A decisão é um acto prático: ela interrompe o processo deliberativo na medida em que entra no domínio da acção. Para Aristóteles, as têm capacidade de deliberação, mas não de decisão, pelo que a sua alma não está vocacionada para a vida pública.
Na perspectiva aristotélica fazem parte da família também os escravos (cf.1254a 10, 1255 b 10). Aqui, é colocada a questão de saber se toda a escravatura é apenas uma convenção ou se haverá homens que nascem por natureza escravos? Aristóteles afirma em 1235 b 10 que existem homens que são escravos por natureza, ou seja, por exigência e vocação da sua própria alma. O escravo não tem capacidade de decisão nem (ao contrário das mulheres) de deliberação, pelo que não consegue agir senão sob a direcção de outro homem. É então do interesse do próprio escravo ser escravo. Contudo, como o próprio Aristóteles reconhece, permanece o problema de, por vezes, a natureza enganar-se. Há almas de escravos em corpos de homens livres e vice-versa.
Ao abordar o tema da polis, para além da casa, Aristóteles apresenta-a na sequência de três tipos de associação humana: 1ª A família; 2ª Um conjunto de famílias (aldeia); 3ª Conjunto de aldeias (cidade ou pólis). A associação entre os homens começa antes da pólis. Temos então de identificar o princípio subjacente à pólis e o que a vai distinguir de uma aldeia maior. Vemos isto em 1253 a e 1252 b 30. É da conjunção dos conceitos de auto-suficiência (autarkeia) e vida boa (euzên) que nasce a “pólis”. A família e a aldeia, entregues a si mesmas, asseguram apenas a subsistência. A pólis existe, na perspectiva aristotélica, para algo mais: não apenas para que o homem viva, mas para que ele realize plenamente a sua vocação humana. Por outro lado, só na polis o homem é homem (cf. 1253a20-25). Ao contrário dos deuses, que são auto-suficientes, e dos animais, que são incapazes de ter uma vida boa através da pólis, o homem é definido como um animal político: a vida política é a condição do homem.
Surge então, no Livro III da Política de Aristóteles, um problema: qual a melhor estrutura política para a pólis? Ao contrário do que acontece em Platão, a resposta não é resolvida de uma forma inequívoca. Para Platão é óbvio qual o melhor dos regimes: esse regime é a aristocracia. O melhor governo é o de uma estrutura aristocrática (o governo dos melhores), porque é um governo ideal e não depende da natureza das circunstâncias.
Na perspectiva aristotélica o governo depende das circunstâncias históricas, às quais se deve adaptar o princípio de que o racional deve comandar e o irracional obedecer. Assim, a instância que tem maior virtude deve comandar a instância que tem menos. O que tem de se medir para encontrar o melhor governo da polis não é a quantidade de homens, mas a virtude de cada um. A virtude somada de muitos homens é, quase sempre, mais virtuosa que a de um só, sendo o melhor de todos os regimes aquele em que o máximo número de homens virtuosos mandem. Contudo, há sempre a possibilidade de a virtude de um homem ser maior que a de todos os outros somada: tal é algo altamente improvável, mas não impossível. Em tal caso, o melhor regime seria o poder do homem cuja virtude excede a de todos os outros somada, ou seja, uma monarquia.
Em Aristóteles não há uma clara opção por um regime. Na Política de Aristóteles, no Livro III, em 1279 a 25, é feita uma tabela dos regimes; existem três tipos de regimes: 1º Uma pessoa manda; 2º alguns mandam; 3º Muitos ou “todos mandam”. O critério usado para esta divisão é a quantidade dos governantes. Cada um destes três tipos de regime distingue-se, depois, dualmente, na medida em que o governo pode ser exercido em nome de um interesse próprio, numa forma degenerada, ou em nome de um interesse ou bem comum. Tais tipos seriam então os seguintes: exercício do governo em função do bem comum (monarquia, aristocracia, regime constitucional ou politeia); exercício do governo em função do interesse próprio (tirania, oligarquia, democracia).
Se houvesse um homem absolutamente virtuoso, cuja virtude excedesse sozinha a virtude somada de todos os outros, o melhor regime seria, como se disse, na perspectiva de Aristóteles, a monarquia (1284a5-15). Contudo, não estando um tal "homem divino" presente, a melhor hipótese seria não a de ser um a mandar, mas a de muitos mandarem. Tal consiste naquilo a que Aristóteles chama politeia (regime constitucional). Esta supõe uma igualdade entre todos os cidadãos livres, na qual as virtudes de todos convergem na promoção do bem comum de todos. Para além da igualdade de todos os homens livres, a politeia caracteriza-se por uma segunda característica: o "império da lei": se não há um homem mais virtuoso que todos os outros somados, e se não há a palavra de um que deva ser lei, nada deve haver acima da lei. A politeia caracteriza-se então pela vigência da própria lei como soberana: ela é, neste sentido, um antecedente do conceito do estado de direito. No fundo, a politeia é, para Aristóteles, o melhor dos regimes. Na perspectiva aristotélica, seria perfeito que houvesse um Deus entre nós, um ser humano que fosse legislador. O melhor regime seria o monárquico em que um Deus dirigisse os homens. Contudo, não havendo deuses habitando entre os homens, e não podendo haver um regime assente nesta "monarquia" da virtude, o melhor seria o regime constitucional. Para Aristóteles, na falta de haver um homem supremamente virtuoso, é preferível que a lei impere sobre os homens.

relator: Ricardo Justino

Aula 5-6 (4 de outubro de 2006)

Os livros II e III da República retomam o tema da educação destinada aos guardiães, para que sejam os melhores entre os cidadãos. A sua educação terá lugar de acordo com a tradição grega, cultivando a alma justamente com o corpo; ou seja, através da ginástica, para o aprimoramento do corpo, e da música, para gerar harmonia na alma (401 d).
Perante esta discussão sobre qual seria a educação mais adequada surge pela primeira vez o tema da poesia na República. A poesia (nos livros II e III) é abordada como parte da educação musical que era destinada aos guardiães da cidade. Assim esta poesia que Sócrates refere é os mitos e as histórias sobre os deuses que eram contadas às crianças desde cedo.
Neste contexto, Sócrates defende a necessidade, para a constituição da cidade, da divulgação de uma "mentira" politicamente útil. Trata-se de um mito originado na Fenícia, de cuja divulgação dependeria o bom ordenamento da polis. Um tal “Mito Fenício” (414d- 415d) consiste, por um lado, em convencer os habitantes da polis de que todos os homens nasceram da terra e são, por isso, irmão. Por outro lado, esses mesmos homens seriam constituídos por algo mais que a terra que os une: eles seriam diferenciados entre si em função de um diferente “metal” a que tal terra se associa. Faz-se então, entre os habitantes da cidade, uma distinção triádica:
- Chefes: homens de ouro;
- Guardiães: homens de prata;
- Produtores: homens de bronze.
Assim, no sentido em que os homens são naturalmente diferentes, entende-se que há homens que nascem para mandar enquanto outros nascem para obedecer.
Já no livro IV, os aspectos da vida da comunidade são regulamentados. Então, Sócrates evidencia uma cidade perfeita. Para ser perfeita a cidade tem que "gozar" das quatro virtudes, ou seja, a sabedoria (sophia) e sabedoria prática ou prudência (phronesis), a coragem (andreia), a temperança (sophrosyne) e a justiça (dikaiosyne). A primeira das virtudes encontra-se exclusivamente nos guardiães; a segunda, também nos guerreiros; a temperança deve pertencer a todos e possibilita a harmonia geral de todas as classes. Assim, a justiça consistirá em cada um exercer uma só função na sociedade: a função que a natureza lhe atribuiu (433a). Aplicando tudo isto ao indivíduo, se a cidade tem três classes, a alma do indivíduo tem três elementos ou partes. Distingue-se aqui a parte apetitiva, a parte irascível e a parte racional. Aos apetites compete obedecer; às emoções, ao thymos, compete moderarem-se e dirigirem-se correctamente para um fim adequado; à razão compete governar.
Seguidamente, numa "espécie" de digressão no livro V, Polemarco e Adimanto interrompem Sócrates para uma boa explicação da comunidade de mulheres e filhos que foi introduzida no livro IV (423e- 424a). Sócrates propusera que, sendo a vida dos guardiães toda passada em comym, os próprios filhos deveriam ser partilhados por toda a classe. Além disso, propusera que as mulheres, tendo a mesma capacidade dos homens, deveriam exercer exactamente as mesmas actividades que os homens. Finalmente, propõe que, para além da igualdade sexual nas actividades políticas e da partilha de mulheres e filhos ao nível da classe dos guardiães, a polis deveria ser governada por filósofos, pois o filósofo é aquele que pratica, que exerce praticamente, a prudência.
É aqui relevante fazer uma distinção entre saber e opinião, ou melhor, entre o «amigo do saber» (philosophos) [1] e o «amigo da opinião» (philodoxos).
Durante os livros VI e VII é abordada a preparação do filósofo.
No início do livro VIII Sócrates retoma o tema que Polemarco e Adimanto tinham interrompido. Então, começa a referir-se às quatro formas de governo e como se sucedem.
Começando pela timocracia (governo que preza as honrarias), passando à oligarquia (" governo de poucos"), depois à democracia (" governo do povo para o povo") e por fim a tirania ("governo de um só homem que ascende ao poder por meios ilegais").
A degradação humana põe a questão inicial da felicidade e virtude de cada uma destas espécies, relacionando com as qualidades predominantes na cidade.
A conclusão é que o tirano (o maior escravo dos prazeres e apetites) é aquele que mais se opõe ao filósofo-rei , pois este tem a acessibilidade aos prazeres mais puros e reais, sabendo também que a justiça ao contrário da injustiça traz vantagens a quem a pratica.
O esboço da sucessão dos vários regimes torna o estatuto de realidade da polis delineada na República eminentemente problemática

[1] O filósofo aqui expresso não é «um membro de uma escola de pensamento entre outras escolas, equipado com doutrinas expressas em fórmulas convenientemente sistematizadas», mas «no fundo, um homem com capacidade para o abstracto». ( E. Havelock. Preface to Plato. P.281).
Relatora: Lia Neves