Filosofia Social e Política

Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Tuesday, December 05, 2006

Aulas 13-14 (15 de Novembro de 2006)

Na obra de Thomas Hobbes, o “Leviathan”, o autor começa por representar o estado de natureza (Cap. XIV), que é o estado anterior ao estado civil e que “é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida”, tendo consequentemente liberdade para “fazer tudo aquilo que o seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios mais adequados a esse fim”. Trata-se então de um estado de liberdade absoluta: todo o homem tem naturalmente direito a tudo e encontramos aqui a principal causa da discórdia entre os homens, o que leva Hobbes a negar a definição aristotélica do homem como um “animal político” – a competição, que se traduz numa guerra “que é de todos os homens contra todos os homens”. O homem, por natureza, é um animal socialmente perigoso. Nesta guerra de todos contra todos, nada pode ser injusto, pois, não havendo um poder comum, não pode haver uma lei. Desta condição, há que salientar que não existe distinção entre o “meu” e o “teu”, pois só um poder comum geralmente reconhecido pode estabelecer os limites intrínsecos à propriedade.
O homem tem, no entanto, paixões que o fazem tender para a paz. Ele é caracterizado, antes de mais, por uma paixão essencial: o medo da morte violenta. Daí que ele seja marcado pela necessidade de escapar ao estado de natureza, resultando dessa necessidade a primeira lei natural: “que todo o homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”. Da execução da primeira lei natural, surge uma segunda, em que cada um deve renunciar a sua liberdade originária e transferi-la para uma entidade exterior – “que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em resignar ao seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que os outros homens permite em relação a si mesmo”.
Ao transferir a sua liberdade para essa tal entidade, cada homem tem que ter a certeza que os outros o vão fazer também. A transferência mútua de direitos é aquilo a que Hobbes vai chamar de pacto. Deste pacto resulta uma circularidade viciosa e desta circularidade chegamos ao conceito chave de soberania, em que o poder soberano não é constituído através dos pactos, mas ele está subjacente ao pacto como sua condição de possibilidade; o poder soberano é retratado como sendo gerado pelo pacto, mas efectivamente o pacto requer a soberania como sua condição de possibilidade; se assim é, a pergunta é inevitável:
- Quais são as marcas do poder soberano? Como é que eu posso identificar o poder como tal? O que é que o caracteriza?
Como primeira característica, o poder soberano permanece no estado de natureza. Esta permanência quer dizer que ele funda uma determinada lei que garante um estado civil que não o determina; ele está acima da lei – o Estado está, neste sentido, “fora da lei” –, ou seja, o soberano está na base de uma ordem constitucional, mas não está determinado por ela, podendo assim decidir um estado de excepção a essa ordem jurídica (isto a nível interno). Mas se só estando num estado de natureza é que se pode fazer pactos, será que o poder soberano, que está no estado de natureza, também pode renunciar, fazendo pactos? Em Hobbes, o poder soberano pode fazer tudo menos deixar de estar no estado de natureza; a sua impossibilidade de “pactuar” consiste na condição de possibilidade da realização dos pactos conducentes ao estado civil, na medida em que não é possível estabelecer pactos sem haver um poder exterior que estabeleça a possibilidade do pacto. Como segunda característica, o poder soberano, estando no estado de natureza, não tem restrição à sua entrada em conflito com os seus semelhantes: a relação de soberania, vista pelo aspecto exterior, consiste em poder decidir a guerra e a paz em relação a outros Estados. A terceira característica decorre das anteriores: tendo em conta a sua condição interior e exterior, a soberania surge a partir da representação da própria sociedade civil (é a unidade do representante que faz a unidade do representado).
Dentro desta tripla característica, vemos que a apresentação de Hobbes do poder de soberania se liga a um determinado regime político; o que Hobbes faz é teorizar o estado absoluto a partir de uma perspectiva moderna. Esta teoria não pode deixar de originar reacções, que são de duas ordens: o liberalismo, que recusa que haja um poder de decisão capaz de se situar num estado anterior à lei e contesta a existência de um poder soberano situado acima da lei (como primeiro teórico do liberalismo temos John Locke); um segundo movimento, um conceito moderno de democracia, que recusa a possibilidade de uma representação transcendente da sociedade (a sociedade não pode ser representada e a vontade do soberano – o povo – não pode ser alienada por uma instância externa que represente o próprio povo e a própria sociedade – o autor paradigmático deste segundo movimento é Rousseau.
Então, como já referi, Locke surge numa tentativa de superação da teoria de Hobbes, e nele está em causa uma nova definição de soberania. Na obra “Dois tratados sobre o Governo”, livro segundo – Cap. II, Locke começa com a tentativa de representar como o estado de natureza não aquele estado de guerra de todos contra todos, mas um estado de perfeita igualdade e liberdade; o que caracteriza o estado de natureza em Locke é a igualdade de liberdade subordinada a uma lei da razão – “Para entender o poder politico correctamente (…) devemos considerar o estado em que todos os homens naturalmente estão (…) de perfeita liberdade (…). Um estado também de igualdade (…)” – “Dois tratados sobre o Governo”, livro II, Cap. II, paragrafo 4.
E esta é a primeira diferença em relação a Hobbes; a segunda é que, em Locke, o estado de natureza não consiste num estado de guerra, porque não são pensadas como essenciais a existência de relações sociais. No estado de natureza de Locke, relacionamo-nos sobretudo com a própria natureza; portanto, em Locke, o que está em causa no estado de natureza é o conceito de propriedade. Enquanto na perspectiva de Hobbes só se pensa em propriedade no estado civil, na perspectiva de Locke o homem é por natureza proprietário: cada homem vive num estado de perfeita liberdade e a esse estado pertence o conceito de propriedade – Livro II, Cap. V, paragrafo 25/26.
Em Hobbes, o reconhecimento dos direitos vinha do estado civil; por isso todos tinham direito a tudo (daí a origem do conflito). Em Locke, pelo contrário, o reconhecimento dos direitos é intrínseco ao estado de natureza; e esses direitos são: direito à vida; direito à saúde; direito à liberdade (sem vida e sem saúde não é possível a liberdade) e, como quarto direito, o direito à propriedade Este é um direito anterior à constituição do estado civil. Tal origina a que se faça uma pergunta: se não há um poder constituído, o que é que determina que uma coisa apropriada seja reconhecida como sendo de um determinado indivíduo? Não será preciso uma entidade exterior que o determine, mas tem de haver uma qualidade que se atribui à “coisa” e que a transforme em propriedade desse indivíduo. A essa relação chama-se trabalho. Qualquer coisa que o homem retire da natureza, transformando-a através do trabalho, passa a ser uma natureza transformada, uma natureza já não simplesmente natural, mas humanizada e, nessa medida, cunhada como propriedade – Livro II, Cap. V, paragrafo 27.

Relatora: Graça Pereira

Monday, December 04, 2006

Aulas 11-12 (25 de Outubro de 2006)

Recapitularam-se aspectos essenciais da filosofia política de Maquiavel. O primeiro aspecto fulcral focado foi o de que no dealbar da época moderna deixou de se entender a política como um exercício de virtude. Assim, já em Maquiavel, o que está em causa não é um aperfeiçoamento do carácter do homem pela prática da virtude, mas a realização dos seus desejos mais íntimos: busca de glória, de riqueza, de poder. A política deixa de ser uma actividade teórica que visa mudar o sujeito, para passar a meditar sobre o melhor modo de realizar aquilo que esse sujeito já sempre e necessariamente é. O governante deve ter uma atitude impetuosa perante a vida. A qualidade do bom governante é a virtú (significando esta palavra, aproximadamente, força ou virilidade), que deve exercer de modo dominador perante a inconstância da fortuna. O importante é, principalmente nos momentos críticos, enfrentar a fortuna com impetuosidade, pois dessa forma se lhe poderá melhor resistir e dominá-la. (ver O Príncipe, cap. XV).
No Príncipe enumeram-se os vários tipos de principados, sendo a verdadeira questão a dos meios pelos quais se pode conservar o poder. Quanto à maneira de este se obter, é indiferente, pois todos os meios são válidos. Logo, deixa de haver a auctoritas (referência a um acto fundador e subsequente linhagem de indivíduos de que brota o exercício do poder) da tradição romana como legitimação do poder. Já não se distingue auctoritas de potestas, pois o próprio exercício do poder confere autoridade. Quem o exerce não precisa reconhecer nenhuma autoridade que o limite, nenhum outro poder que possa interferir no seu domínio. O poder gera de si mesmo a sua própria legitimidade, o que equivale a dizer que os poderosos não têm necessidade de apresentar justificações de si.
Subjacente a isto está uma visão muito pessimista da natureza humana, que é também um sinal dos tempos conturbados que se viviam na Europa. Esta visão, sendo um dos pressupostos da génese do pensamento da modernidade, está também presente em Thomas Hobbes.
Hobbes também coloca a tónica na vontade insaciável de poder do homem, associando-a ao desejo de auto-preservação: encarando-se o homem como um ser ameaçado, que tem que lutar pela própria sobrevivência, o poder é o meio pelo qual esta melhor se pode assegurar. Todavia, o desejo de poder não tem um limite pois é necessário adquirir mais e mais poder para se manter os meios de viver bem. Assim há «em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte» (Leviatã, Cap. XI, 2º parágrafo).
O homem à partida não é limitado por nada, tem direito (1) a tudo e a todos que constituem o objecto do seu desejo. No seu estado de natureza, o homem é um ser dominador que têm a liberdade (2) de subjugar tudo e todos, e o mundo é encarado como um objecto de conquista. Os homens são iguais entre si: o mais fraco de todos tem força suficiente para matar o mais forte, e as diferenças entre uns e outros não são tão grandes que um não possa aspirar a um benefício a que outros não possam também aspirar (ver Cap. XIII, 1º par.). Todos aspiram de igual modo ao poder (Cap. XII, 3º parágrafo). Ora, se não há limitações à ambição de cada um nos seus desejos de poder e de riqueza, há todavia uma quantidade finita de poderes e de bens para serem distribuídos e, portanto, há um conflito de interesses que impede os seres humanos de conviverem pacificamente. O estado de natureza do homem, ser de desejos insaciáveis, é um estado em que todos estão em guerra contra todos, e a auto-preservação de cada um exige o uso da astúcia ou de quaisquer meios de que se possa fazer mão. Os homens são iguais quanto à esperança de atingir os mesmos fins e, se desejam ambos uma mesma coisa impartilhável, tornam-se inimigos e esforçam-se por se destruir mutuamente. Assim, cada indivíduo constitui uma ameaça à segurança de todos os outros, e esta é uma situação insustentável.
Esta condição natural do homem é uma abstracção, uma representação do homem num estado prévio à constituição de leis. Hobbes define como “direito de natureza” «a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, a vida». Decorrente desta natureza humana, a razão estabelece como regra (primeira lei de natureza) a proibição de que o indivíduo nada faça para prejudicar a sua própria vida e, portanto, se esforce por adquirir a paz como meio alcançar a segurança. Esta lei de natureza é a primeira limitação ao direito de natureza do homem a tudo e a todos. Desta primeira lei fundamental deriva a segunda: um homem deve concordar, sempre que os outros também o façam, em renunciar ao seu direito a todas as coisas, concordando em limitar a sua liberdade ao que “aos outros homens permite em relação a si mesmo” (Cap. XIV, 6º par.). Estas leis e todas as outras não são mais do que o preceito bíblico que diz “faz aos outros aquilo que queres que te façam a ti” resume.
É portanto necessária a instituição de um estado civil que tire o homem do seu estado de natureza, onde não existe a justiça ou a injustiça mas apenas a luta pela sobrevivência. Onde não há estado civil, organizado, os homens têm direito a todas as coisas e nada pode ser injusto. A «justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos» e «a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los» (Cap. XV, 3º par.). O pacto é todo o acordo que cada homem faz com os restantes de renunciarem simultaneamente às suas liberdades naturais com fim ao bem comum. A instituição do Estado permite a correcta observância dos pactos por constituir um poder situado acima das vontades individuais, a que todos se devem subjugar. Tem de haver um direccionamento do direito natural para uma instância exterior aos indivíduos, para que estes não se destruam mutuamente, e é necessária a sua força coerciva para obrigar os homens a cumprir os pactos. Sem ela, em rigor, estes não poderiam ser celebrados.
Pelo pacto os cidadãos comuns renunciam simultaneamente de todos os seus direitos, que transferem para o soberano. É necessário um representante (soberano singular ou assembleia) para conferir unidade aos interesses divergentes dos indivíduos. É na a unidade do representante que se constitui a unidade do representado. Assim, transferindo o seu poder para um representante (que permanece acima das obrigações contratuais a que todos os outros estão sujeitos), o povo é o verdadeiro autor dos actos do seu representante, e fazê-lo é do interesse de todos, uma vez que sem este pacto cada um poderia contar apenas consigo mesmo para se defender de múltiplas ameaças. É só através da representação que o povo se constitui como sujeito portador de uma vontade própria. «À multidão assim unida numa só pessoa chama-se Estado» (Cap. XVII, 13º par.).

(1) Por “direito” entenda-se “a liberdade que cada homem possui de usar o seu poder”, ou seja, a ausência de impedimento. O homem tem direito a tudo e a todos no sentido em que, no seu estado de natureza, nada o impede de tudo querer conquistar ou usar a força sobre outro indivíduo.
(2) “Liberdade” é um termo definido por Hobbes como «ausência de impedimentos externos» (Cap. XIV, 1º parágrafo) de cada um fazer «o que o seu julgamento e razão lhe ditarem». Os conceitos hobbesianos de um modo geral são definidos previamente à sua utilização, para se esclarecer o sentido em que o autor os concebe e utiliza. O leitor mais incauto cairá em erros interpretativos se não atentar nas definições que vão sendo feitas ao longo da obra.

Relator: Pedro Santos.

Sunday, December 03, 2006

Aulas 9-10 (18 de Outubro de 2006)


DA PERSPECTIVA CLÁSSICA E FIM DA POLIS
No decorrer das aulas, analisámos a polis nas perspectivas de Platão e Aristóteles, e o devido contraste entre estes filósofos, onde se pode circunscrever um mesmo ponto de partida, nomeadamente que "o homem é um animal político". Desta essencial politicidade da natureza humana resulta a identidade ontológica do próprio Homem. Como diz Aristóteles: "É evidente que a cidade é, por natureza, anterior ao indivíduo, porque se um indivíduo separado não é auto-suficiente, permanecerá em relação à cidade como as partes em relação ao todo. Quem for incapaz de se associar ou que não sente essa necessidade por causa da sua auto-suficiência, não faz parte de qualquer cidade, e será um bicho ou um Deus" (1). Neste pensamento político, o pensamento subjacente é o de que é possível estabelecer uma analogia entre a pólis e a alma humana: a polis é a reprodução da alma humana e é uma realidade natural que, como tal, existe desde sempre, correspondendo desta forma a uma natureza meta histórica.
Segundo a perspectiva clássica, a polis, em certo sentido, sempre existiu e sempre há-de existir, na medida em que ela é condição da própria humanidade do homem. Todavia, a polis é, de facto, uma experiência politica situada. Houve um período político prévio e posterior à polis. Platão situa-se no momento culminante desta experiência política situada, tal como Aristóteles que se situa no fim. O desmoronamento da polis efectua-se com o inicio da era imperial. Com Alexandre Magno a dar continuidade a seu pai Filipe II na expansão militar da Macedónia, infunde uma ascensão do império Macedónio a Norte da Grécia que irá provocar uma progressiva anexação das Cidades-Estado gregas ao império, marcando, por conseguinte, o fim da experiência politica da polis.
O fim do império de Alexandre Magno termina com a sua morte em 323 a.C.; porém, tal não marca o fim da experiência politica imperial, mas o início da experiência em que a vida politica consiste não na vida politica em pequenas comunidades como na polis, mas em comunidades politicas enormes designadas justamente como "império". Primeiro com o desmembramento do império de Alexandre, que dá origem ao Egipto ptolomaico e da dinastia dos selêucidas, e, depois, finalmente, com a ascensão de Roma.

DO PERÍODO HELENISTISCO E ERA IMPERIAL
Para Aristóteles, não é possível contornar a realidade política da polis. Pelo contrário, para a geração posterior a Aristóteles, cujo aparecimento coincide com a emergência do período helenístico, a polis é uma realidade política situada.
Esta experiência política nova – que poderia ser designada de era imperial – é caracterizada primeiramente pela negação de o Homem ser um animal político, ou seja, pela não determinação do homem, na sua constituição ontológica, pela sua politicidade. Assim, a alma humana não pode ser abordada a partir da sua analogia com a estrutura da cidade, pois,segundo esta perspectiva, a alma enquanto realidade "espiritual" não tem qualquer comparação com a realidade exterior, visível e fenoménica.
A relação do indivíduo com esta nova experiência política em unidades políticas muito vastas é uma experiência de perda e de desorientação, pois o indivíduo aqui fica sozinho no meio de um "kosmos" incomensurável e impossível de ser medido de acordo com uma medida estrutura que a familiaridade da vida política reproduz. No período helenístico, a situação política do indivíduo na ordem política não determina a sua identidade mais íntima, como acontecia na perspectiva platónica e aristotélica, que defendia, pelo contrário, que o cumprimento da natureza humana dependia da vida politica. Na perspectiva do período helenístico, a felicidade não é determinada pela vida política e a vida política ou as acções do homem não determinam a sua felicidade; o homem é chamado a ter uma vida feliz no interior da sua alma, independentemente da sua situação exterior. O Homem, nesta nova óptica, pode realizar-se e cumprir-se na sua interioridade independentemente da sua posição social e independentemente do estatuto político que vai adquirir no seio do império.
Na perspectiva platónica e aristotélica, nem todos podem ser filósofo, pois esta condição só compete à natureza de alguns homens; pelo contrário, na perspectiva helenística, todos homens podem ser filósofos e são chamados a essa exigência suprema, independentemente da sua situação política e social. Para ilustrar esta concepção, temos o caso do filósofo Epitecto, que, independentemente de ser um escravo, mantém a sua liberdade interior que é irredutível e não pode ser posta em causa pela sua condição de escravo. Da mesma forma, Marco Aurélio é imperador de Roma; mas esse estatuto de imperador não determina o essencial: o essencial é a sua interioridade. Na sua interioridade, Marco Aurélio é um filósofo como Epitecto, ou seja, um Homem cuja sua essência e liberdade interior é irredutível.
Este movimento de despolitização do indivíduo é portanto uma ruptura entre uma dimensão interior e outra exterior no Homem. A liberdade de Epitecto e de Marco Aurélio é desprovida de condições sociais ou quaisquer circunstâncias exteriores em relação à sua essência interior; eles são livres na sua alma, independentemente do seu corpo. Esta ruptura é essencial na filosofia política do período helenístico e determina a especificidade deste mesmo período em relação à fase da filosofia política grega clássica.
Esta ruptura do período helenístico vai ser o cerne da vida politica em Roma.

DA INSTITUIÇÃO IGREJA CATÓLICA
Com a cristianização do Império Romano e a instituição da Igreja, o dualismo entre interioridade e exterioridade reconfigura-se, articulando-se com a divisão entre o que é de Deus e o que é de César.
Para as primeiras comunidades cristãs, a história secular era a história da revelação de Deus ao Homem. Essa revelação acontecia através dos vários profetas que se sucedem ao longo da história; porém, após o advento de Cristo, essa revelação está consumada, uma vez que o próprio Deus encarna em homem, vive com os Homens, fala com os Homens e morre com os Homens. O advento de Cristo, para os cristãos, é o apocalipse (apocalipse quer precisamente dizer "revelação"). Se, para os cristãos, a história secular é a história da revelação de Deus ao Homem, e essa revelação está consumada, então não pode haver mais história, ou seja, devia suceder ao apocalipse o fim dos tempos – o momento escatológico. Se é assim, e se ainda existe história, existe uma ruptura entre apocalipse e momento escatológico, ruptura que se constitui como problemática para as próprias comunidades cristãs.
A igreja Católica é uma realidade que se insere num período pós-profético, pois, como se disse, após o apocalipse não existem mais lugar para profetas, ou seja, para testemunhas daquilo que há-de vir. Surge, em lugar do profeta, o apóstolo: este dá testemunha ou surge como mártir (em grego, testemunhar diz-se "marturein) daquilo que já aconteceu; não anuncia algo que ainda está por cumprir.
São Paulo procura resolver a dificuldade da separação entre apocalipse e escatologia através do conceito Kat-echon. Este conceito é uma força misteriosa que detém o tempo, atrasa-o e não o deixa findar. Mas nesse deter do tempo existe outra força, que S. Paulo chama o mistério da iniquidade, um homem da iniquidade (em grego: anomia). Conta São Paulo que, antes do momento escatológico, há-de vir o Adversário que quer tirar Deus do seu trono: "Agora, vós sabeis perfeitamente o que o detém, de modo que ele só se manifestará a seu tempo. Porque o mistério da iniquidade já está em acção, esperando apenas o desaparecimento daquele que o impede". (2)
A igreja é uma instituição política e social e, nesse sentido, ela tem uma relação íntima com o império romano. No entanto, a mensagem que a igreja tem é justamente a mensagem de que o fim é iminente. A igreja dentro da história anuncia o fim da própria história; dentro das suas relações de poder e dentro do mundo político, anuncia o fim da própria política. Desta forma, as relações da igreja católica com o império romano tornam-se controversas.
A igreja católica relaciona-se com o império, por um lado, como uma entidade independente, cada vez mais unificada e centralizada através da figura central que o papa ocupa. Por outro lado, relacionando-se com o império e depois com os reinos como instância política, constituindo-se perante a realidade política do seu tempo como uma instância crítica, procurando subordinar os poderes a um direito que deles seja independente.
O conceito de justiça, na perspectiva da filosofia clássica, tanto na de Platão como Aristóteles, apela para aquilo que é justo por natureza. Esta justiça natural caracteriza-se, por um lado, por ser invariável, ou seja, não varia no espaço e no tempo; por outro lado caracteriza-se, essencialmente, pela sua não arbitrariedade. À justiça natural junta-se o conceito de justiça ou direito convencional: um direito meramente normativo que varia no espaço e no tempo. Se tivermos em mente a diferenciação entre direito natural e convencional, vamos atribuir à relação entre estes dois direitos uma relação segundo a qual o direito natural pode servir de instância crítica. O plano do direito convencional configura o que é justo e injusto por convenção. A igreja católica – como uma instância crítica, situada numa realidade meta-histórica como protagonista e representante de um direito mais elevado do que as várias leis estabelecidas pelos vários príncipes e imperadores – mediante esta dicotomia vem reclamar para si o direito natural.
A partir do cristianismo, da dicotomia entre direito natural e direito convencional resulta uma segunda dicotomia: a dicotomia entre 1) o direito positivo ou, o que é o mesmo, entre o poder que estabelece o direito e 2) o direito natural, isto é, o direito ou aquilo que é justo que reclama para si a capacidade de determinar o poder. Recuperemos o que se disse por outras palavras: os reis, imperadores, príncipes têm, por um lado, uma potesta, que se caracteriza justamente por poder estabelecer as leis; diante desta potesta, edifica-se uma instância exterior, que, embora não exercendo directamente uma potesta, surge com uma potesta para além da própria potesta dos reis. A esta potesta de segunda ordem, a este poder da justiça diante do poder, o catolicismo irá chamar potesta indirecta.

DA DISTINÇÃO ENTRE AUCTORITAS E POTESTA
Na república romana, a diferenciação entre a auctoritas e a potesta é edificada segundo os respectivos representantes, nomeadamente o senado e os magistrados supremos (cônsules). Em número de dois, os cônsules eram os mais importantes magistrados, e eram estes os detentores da potesta. Os cônsules, numa altura de crise da república romana, elegiam um ditador para debelar essa mesma crise. Este ditador, elegido pelos detentores da potesta, tinha duas restrições: por um lado, o ditador tem um prazo de 6 meses para debelar a crise (uma vez findado o prazo, o ditador abdica desse seu estatuto); por outro lado, o ditador tem de restringir as suas funções à debelação dessa mesma crise. A história diz-nos que estes ditadores foram eficazes, pois a maior parte destes acabaram a tarefa antes dos 6 meses estabelecidos. O ditador não tem em si mesmo todo o poder; contudo, concentra paradoxalmente para si o poder, pois é nomeado magistrado extraordinário por quem tem a potesta, os cônsules. Porém os cônsules não têm todo o poder em Roma: existe uma instituição que, ao contrário do que se passa com os magistrados que têm a potesta, não é uma instituição de magistrados, mas é uma instituição que representa os primeiros pais da república (patrícios); portanto, os autores da república e, desta forma, os autores, os "pais da pátria", instituição essa designada por senado. Estes não podem eleger um ditador para debelar uma crise; todavia, podem declarar um estado de crise de tal forma grave que não pode ser controlado através da ditadura. Neste estado de profunda crise, as leis deixam de existir, dando lugar a à existência da anomia. Esta situação de anomia é declarada pelo senado através do que eles designam de senatus consultum ultimum, caracterizado por um estado de tal forma anómico que cessam as leis para autorizar qualquer cidadão a ter o livre arbítrio de escolher qualquer medida que lhes afigure em prol da república.
O contraste entre o estado de crise debelado pela ditadura com o estado de crise declarado pelo senado leva à seguinte dicotomia: por um lado, a potesta é um poder que se encontra determinado num certo enquadramento político, isto é, é um poder constituído no seio da república; por outro lado, a auctoritas refere-se a um poder ainda não constituído, mas situado fora da ordem política e detido pelo poder que constitui a própria ordem, sendo, nessa medida, o seu autor: a auctoritas é então um poder constituinte da própria ordem.
Esta dicotomia vai passar para a igreja romana no seio do império. Entre os poderes constituídos a igreja é a instituição que tem uma autoridade para além da própria potesta, ou seja, detentora da potesta indirecta. O direito natural no período medieval não era problematizado como na altura clássica. Porém, a igreja afirma-se aqui como detentora do direito natural: o direito natural é algo revelado por Deus à consciência humana e submetido à interpretação da Igreja.
Até à cisão da unidade cristã, o direito natural e convencional está relativamente solucionado – os reis têm a potesta e acima destes está a autoridade do papa, como protagonista de um poder indirecto.
Porém, esta dualidade entre a igreja e o rei é uma relação problemática, no sentido de aferir qual é realmente a posição entre estes. Quando a igreja começa a organizar e a centralizar o seu poder, na figura hegemónica do papa, este começa por contestar que os reis possam ter uma autoridade perante a nomeação de bispos para as várias comunidades.
No início do cristianismo, a expectativa de resolver os problemas entre a igreja e o poder mundano são uma característica inerente aos primeiros teólogos. A primeira tese que procurou definir a posição política do imperador consisitia na tentativa de estabelecer uma analogia entre o seu papel no seio do império e o papel de Deus no universo. Da mesma forma que Deus é senhor do mundo, e portanto é a figura central, assim também o imperador é a figura central do império e senhor dos homens. A estrutura do império reproduzia a centralidade do imperador em relação aos homens, da mesma forma que Deus em relação ao mundo. Tal relação foi caracterizada por Erik Peterson como a "teologia política" do império romano.
A base da teologia político do império consistia, segundo Peterson, numa determinada interpretação da relação entre Deus e o Cristo enquanto Filho de Deus. Ela assenta na perspectiva de Arius, denominada de arianismo. Esta doutrina negava a existência da consubstancialidade entre Jesus e Deus. Deus é uno e o seu filho é uma pessoa subordinada a Deus, ou seja, ao uno. Assim, torna possível a analogia referida anteriormente entre Deus e o imperador.
Porém, a igreja, no primeiro Concílio de Nicéia, que teve lugar durante o reinado do imperador romano Constantino I, em 325, promulga a doutrina do Credo, que vai contra as teses apresentadas pelo Arianismo, determinando que Deus é uma substância triádica, respectivamente, entre Pai, Filho e Espírito Santo. Esta consubstancialidade entre as três figuras determina que não é possível encontrar na realidade divina um paralelo estrutural com a realidade mundana da estrutura do império, ou seja, não pode haver uma analogia entre Deus e o imperador. Esta reestruturação da igreja vai causar um movimento progressivo de centralização do poder no seio da própria igreja, movimento este que leva à possibilidade, em finais do séc. XI, ao contrário do que se passava anteriormente, de o Papa nomear os bispos das outras comunidades. Esta centralidade do papa vai determinar a convivência e os conflitos posteriores entre este e os reis. Tal conflito é sobretudo manifesto no século XIV. Com efeito, Filipe o Belo, rei de França, disputa com o papa o poder de nomear os bispos, tentando retirar ao papa esta capacidade. Em virtude disso o papa excomunga-o! A relação entre a autoridade espiritual do papa com o poder mundano é uma relação historicamente instável. Com efeito, existe uma certa estabilidade num plano consensual, uma vez que os papéis entre um e o outro estão relativamente definidos até à Reforma e, com ela, à génese política da modernidade.

DA MODERNIDADE
A estabilidade entre autoridade do papa e o poder mundano cessa no momento em que a reforma induz uma ruptura no seio da igreja. Nesse momento o problema do direito natural deixa de estar resolvido, e a determinação do seu conteúdo passa uma vez mais a ser problemática. O acontecimento fundamental que constitui a reforma é a introdução, no plano político, de deixar de haver referência a uma instituição, moral e crítica, ou seja, uma instituição detentora de um direito mais elevado reconhecido consensualmente como direito natural, diante dos poderes fácticos.
Desta forma, como nos diz Leo Strauss, a actividade política de então é compelida a um abaixamento das expectativas que nós temos em relação ao Homem. Na perspectiva clássica, a política era a condição fundamental de possibilidade de o Homem se realizar plenamente, sendo que a sua actividade política era um exercício de virtude. Com efeito, como na modernidade já não há uma referência ao direito natural clássico enquanto "doutrina da virtude" e o direito natural se torna problemático, então a política já não serve para o Homem se realizar enquanto exercício de virtude. A política na modernidade não serve para melhorar o Homem; serve como condição de possibilidade para o Homem atingir um poder suficiente para ser aquilo que ele já é. O Homem tem dois desejos fundamentais: em primeiro tem um desejo de poder; em segundo tem um desejo de não morrer e viver o máximo de tempo possível, ou seja, um desejo de segurança na vida que inviabilize a morte prematura. Os livros de referência, sobre esta matéria, abordados pelo professor foram "O Príncipe" de Maquiavel e "O Leviatã" de Thomas Hobbes. Nem Maquiavel nem Hobbes estão interessados em mudar o Homem através da vida política, em cultivarem a virtude. Ambos estão interessados sobretudo em desenvolver no Homem técnicas pelas quais o Homem cumpra esse desejo de poder político.
"O Príncipe" de Nicolau Maquiavel é uma obra dedicada a Lourenço de Médicis onde expõe o seu "conhecimento das acções das grandes personagens" (3), desenhando o perfil ideal que um príncipe deve adoptar. O resumo exposto é curto e selectivo, pretendendo apenas aludir ao carácter pessimista que o Homem tem sobre si, e qual o interesse político que esta época inspira ao autor. Maquiavel principia por nos falar dos vários principados da Itália do renascimento, e, nos capítulos seguintes, respectivamente, os vários príncipes. Há príncipes hereditários, ou seja, que já nascem príncipes, e outros que não nascem príncipes, porém adquirem esse estatuto. Trata-se, portanto, de uma essencial igualdade em cada homem no seu anseio pelo poder. Qualquer homem que não nasça príncipe pode adquirir um principado, por várias circunstâncias, circunstâncias que Maquiavel se expressa, respectivamente, capítulo VI – Dos principados novos adquiridos pelas suas próprias armas e pelos seus talentos; capítulo VII – Dos principados novos que se obtêm pela força e sorte alheias; VIII – Daqueles que chegam ao principado pela perfídia; e por fim, capítulo IX – Do principado civil, ou seja, "quando um cidadão se torna senhor do seu país não por perfídia ou por outra violência execrável, mas sim, pelo favor dos seus concidadãos" (4). Maquiavel enceta por explicar que é muito mais difícil manter o poder a um príncipe que apenas herdou o seu principado, do que a outro que o tenha conquistado arduamente. Naturalmente, para conquistar esse principado, é necessário ser um homem com grande vírtu (virtude, talento), vírtu essa que um mero herdeiro pode não ter desenvolvido. E o que se trata é precisamente isso, ou seja, o que interessa na perspectiva maquiavélica é precisamente a obtenção e execução de técnicas pelas quais o poder inerente à natureza humana possa ser exercido e mantido. A ilustrar este plano, Maquiavel no capítulo XVII pergunta se "é melhor ser amado ou ser temido, ou o inverso" (5), respondendo que "os homens hesitam menos em prejudicar um homem que se torna amado do que outro que se torne temido, pois o amor mantém-se por um laço de obrigações que, em virtude de os homens serem maus, se quebra quando surge ocasião de melhor proveito. Mas o medo mantém-se por um temor do castigo que nunca nos abandona" (6). Enquadrado perenemente ao longo do livro em definir o perfil ideal que um príncipe deve adoptar, diz Maquiavel "que existem duas formas de combater: pelas leis e pela força. A primeira é própria dos homens; a segunda é própria dos animais. Mas como, muitas vezes, aquela não chega, há que recorrer a esta, e, por isso, o príncipe precisa de saber ser animal e homem. (…) Já que um príncipe deve saber utilizar bem a natureza animal, convém que escolha a raposa e o leão" (7). Veja-se aqui, o leão é símbolo da força, e a raposa é símbolo da esperteza e habilidade intelectual que permite intuir as oportunidades que tem, e por tal, as saber aproveitar através da força – análoga ao leão –, sendo estas duas naturezas compatíveis e ideais para o bom príncipe. Repare-se aqui que há uma analogia com os heróis clássicos. O leão aludindo à força de Aquiles; e a raposa aludindo às manhas de Ulisses.
Para Maquiavel é inevitável a sorte e a fortuna serem obstáculos ou volantes para o sucesso da concretização da vontade de poder. Não se pode eliminar a fortuna nem a sua gravidade; por tal, o Homem tem que contar com ela no seu investimento para obter sucesso. Para tal Maquiavel é "do parecer de que é melhor ser ousado do que prudente, pois a fortuna é mulher e, para a conservar submissa, é necessário bater-lhe e contrariá-la. Vê-se, não raro, que prefere deixar-se vencer pelos ousados do que pelos que procedem friamente. Por isso é sempre amiga dos jovens, como mulher, visto eles terem menos respeito e mais ferocidade e subjugarem-na com mais audácia" (8). A vontade de poder é a única condição de garantia de uma vida feliz e, por isso, todos os métodos são bons ou maus dependo da sua eficácia. A crueldade é boa ou má dependendo do seu carácter útil e eficaz. A política é vista sobre o plano da proficuidade das acções.

1) ARISTÓTELES – Política, Vega, 1998, 1253a 20-29
2) PAULO, II Epístola aos Tessalonicenses, 2: 6-7, Bíblia Sagrada
3) MAQUIAVEL – O Príncipe, Europa América, 2000, p 11
4) Ibidem, p 54
5) Ibidem, p 89
6) Ibidem, p 89-90
7) Ibidem, p 93
8) Ibidem, 132-133
relator: Hugo Pereira